Quando entrevistei a atriz, há dois anos, ela estava no júbilo de Maria da Paz. E “empatia” foi palavra trazida à entrevista por ela própria
Não esperem que Juliana Paes esteja neste momento lendo cada ataque hater ou crítica, assim como eu mesmo não espero que ela venha a ler este artigo. É que, regra das regras que adotou na vida, em nome da saúde mental: não ler esse tipo de coisa. Pelo menos foi o que me disse há dois anos, quando a entrevistei para a matéria de capa da revista GPS Lifetime. O tema da saúde mental nem era tããão falado quando ficou depois da pandemia, e “empatia” já até era palavra da moda, mas talvez não estivesse tão esgarçada quanto agora. E ela trouxe a palavra e o tema à entrevista.
Juliana Paes é tão amorosa que vocês conseguem entender o porquê de artistas incríveis como Ícaro Silva e Letícia Sabatella estarem tão empáticos em suas palavras à ela? Ela é tão querida que nem mesmo o Tico Santa Cruz, que costuma ser mais contundente nas críticas, o fez. E há razão pra isso: ela é, sim, empática. Ao falar sobre a profissão, disse que para ser atriz é necessário ter uma profunda empatia, e que este é o motor para sua construção de personagens simples e populares como Maria da Paz, Gabriela ou Bibi. Calma, eu não estou pretendendo escrever um artigo passando pano ou ignorando os problemas da fala da atriz. E quando você entrevista um artista, você não passa a imediatamente saber-se conhecido dele e tampouco a tê-lo como amigo. A questão é que há inúmeras Julianas Paeses pelo país, e precisamos falar sobre isso.
O problema da fala dela, ao tentar se posicionar defendendo a isenção é outro, que não a falta de empatia. Tanto que ela defende que as minorias e a pauta progressista sejam respeitadas, mas na perspectiva de um estado liberal, em que as liberdades individuais sejam respeitadas. E depois pede um Estado enxuto (que, assim sendo, não conseguiria dar conta das demandas que ela própria apontou, como o atendimento às questões das minorias). São tantos campos distintos advindos de ideologias tão diferentes que se essa fala fosse um partido político, poderia facilmente se chamar PSL, porque “social” e “liberal” não andam juntos, nem nunca andarão. Quando fala sobre liberdades individuais, ela evoca ao libertarismo e não ao liberalismo. E libertarismo é um conceito… de esquerda. Portanto, o principal problema da fala está no excesso de senso comum. E também… no antipetismo.
Sim, porque o antipetismo foi o responsável recente por introjetar no debate público a existência de “delírios comunistas” em curso. E de haver uma extrema esquerda perigosa. Sem citar nomes – coisa que ela teve o cuidado de fazer por toda a sua fala – Juliana quis dizer que é contra Bolsonaro, mas é contra Lula também, e que portanto uma saída para o caos em que estamos seria uma terceira via (essa, inexistente, porque não vai ter Huck nem Dória nem Moro e nem Ciro, precisamos nos conformar que o país segue polarizadíssimo e que a discussão agora é civilização x barbárie e não direita x esquerda). É aí que entra o excesso de senso comum na fala: o de se antagonizar Bolsonaro e Lula.
Na esquerda, defende-se Lula porque foi o primeiro projeto de poder advindo da classe trabalhadora, não por haver nele alguma ilusão de que seria capaz de implantar um Estado comunista. Em seu governo, experimentamos uma política social-democrata de economia liberal, e não houve aproximação de projeto comunista algum. Basta ter um pingo de memória e lembrar dos bancos lucrando como nunca, do dólar baixo, da bolsa estável. Me lembro de, certa vez, estar cobrindo um evento com o então presidente, em que ele disse que “comunismo era coisa de jovens”, que com a idade você vai caminhando naturalmente para o Centro. Lembro de ter sentido raiva dessa fala por entender que traía os ideais de muita gente na esquerda, mas a bem da verdade é que ele não falava nenhuma mentira ao verbalizar isso: escancarava o que eram ele e seu governo. Portanto, não há simetria possível entre Lula e Bolsonaro, sob nenhum aspecto. Mas isso, apesar de parecer óbvio na bolha da esquerda, não é claro entre milhões de Julianas do país. Há o receio de que, ao se posicionar contra Bolsonaro, a pessoa seja lida imediatamente como apoiadora de Lula.
É injusto falar sobre a incapacidade de Juliana Paes de olhar para além dos próprios privilégios. Ela goza de seus privilégios após mais de 20 anos de trabalhos contínuos e bem remunerados, um casamento com um empresário, mas jamais poderia imaginar que viveria na Barra da Tijuca quando, na década de 80, era uma garota de família humilde de Rio Bonito. E filha de policial militar, portanto alguém que cresceu tendo como ídolo alguém de farda – o que representa muita coisa no bolsonarismo. “Me custa falar certas frases de Bibi, como ‘Eu não sou amiga de polícia!’, porque meu pai é militar. Penso: ‘Desculpa, paizinho!'”, disse Juliana em 2017, ao jornal Extra, época em que interpretava Bibi Perigosa, esposa de traficante, em “A Força do Querer”.
Novamente, não é uma passada de pano. É colocar as coisas em perspectiva. E é um lembrete de que, como ela – no tuíte que viralizou, vinha acompanhada a frase de que seu discurso tinha a profundidade de um pires – há milhões de outros brasileiros com questões parecidas.
Certa vez, enquanto fazia assistência de direção da peça Azul da Prússia, de Alexandre Ribondi, em 2017, o ator que contracenava com o diretor questionou a mim e à produtora da peça, Elisa Mattos, sobre o porquê de, nós “do Plano Piloto” (região central de Brasília), não gostarmos de polícia, sendo que na quebrada dele, eles eram vistos como herois, porque “se não fossem eles, não teríamos paz um segundo”. Retruquei que não era verdade que eu não gostava da polícia, só criticava os muitos excessos, o racismo institucional, o abuso de autoridade. Mas aquilo me fez repensar nos meus privilégios. Era fácil ser contundente na crítica vivendo em bairro bom. Porém o ator era branco, então novamente botei minhas opiniões no limbo – se fosse negro, talvez lesse a polícia de outra forma. Mas o que quis dizer com isso é que é bem provável que agora ele pense parecido com Juliana, bem como seus vizinhos e amigos. E não tenhamos dúvidas: o antipetismo fez estragos imensos no senso comum e faz com que ele, ela e muitos mais, olhem para Lula como o representante da extrema esquerda.
O caminho para sairmos dessa? Existe, e é longo. E não passa por atacar cada isentão, sem que se compreenda as complexidades do “insentonismo”.