Athos Bulcão: “não sou autodidata. Portinari me deu uma porção de noções”


Ele se foi hoje, aos 90 anos. Quem mora em Brasília, como nós do Drops, sabe o quanto esse artista foi representativo e o quanto sua obra é presente pelos cantos da cidade. Athos Bulcão concedeu em 1991 uma entrevista, guardada no Arquivo Público do DF, que revela a simplicidade do artista. Ele tinha 73 anos na época do depoimento.

Ainda bem que julho termina hoje. Reparou como foi um mês de perdas representativas? Reproduzo, agora, a matéria que fiz para a Agência Brasil, sobre o depoimento de Athos.

Artista de grande expressão, Athos Bulcão, morto hoje (31) aos 90 anos, em Brasília, embora tenha desenvolvido um trabalho muito peculiar e criado suas obras a partir de uma inspiração que ele mesmo não acreditava existir, não se considerava autodidata. É o que revela um depoimento dele que se encontra no Arquivo Público do Distrito Federal, encaminhado à imprensa.

Nas duas horas da gravação em fita cassete, o artista conta sobre sua infância, a descoberta da vocação para as artes, como veio para Brasília e detalhes da produção de sua obra. O depoimento é de 1991. Athos foi amigo de Candido Portinari, pintor brasileiro que é considerado o que alcançou maior projeção internacional.

Com ele, Athos trabalhou nas obras da igreja da Pampulha, em Belo Horizonte, e chegou a morar em sua casa, em 1945, quando passava por dificuldades financeiras.

“Portinari, no trem, disse assim: ‘Onde é que você vai morar?’ Eu digo assim: ‘Eu vou ficar uns dias na casa da minha irmã, mas eu tô procurando um lugar pra ficar’. Eu não disse onde era, mas eu tava morando em pensão nessa época. O Portinari disse: ‘Não. Vai lá pra casa, que você procura com mais calma e não sei o quê’. E nessa coisa, eu fiquei com o Portinari todo o ano, até o fim do ano”, contou, no depoimento.

Por causa deste período, e do grande aprendizado que considera que teve ao lado de Portinari, Athos não se considerava autodidata. “Eu não posso me considerar um autodidata porque o Portinari me deu uma porção de noções. Eu não sou autodidata não”, concluiu.

A obra de Athos vai muito além dos famosos painéis de azulejos, da lateral cubista do Teatro Nacional e dos painéis de mármore espalhados por diversos prédios públicos de Brasília, como o Palácio do Itamaraty (sede do Ministério das Relações Exteriores). Ele produziu também pinturas, máscaras, fotomontagens e desenhos eróticos.

Tudo se transformou em arte com dificuldade, segundo Athos. “Sempre se trabalhou aqui com o mínimo. Você repara que os meus trabalhos são feitos com material muito barato: é azulejo, concreto. Pesa muito pouco na construção. Depois é que eu me habituei a tentar resolver com… sem ficar ordinário, mas com um material barato”, disse.

Athos Bulcão não foi filiado a nenhum partido político, mas se dizia simpatizante com a esquerda. Era católico praticante. No período em que morou em Brasília (os últimos 60 anos), foi funcionário da Empresa Urbanizadora da Nova Capital (Novacap), responsável pela decoração de interiores – e foi com salário de funcionário público que foi pago por grandes painéis como o do Teatro Nacional.

Além das grandes obras que ficaram, também produziu obras “efêmeras”, como instalações durante o natal e o carnaval brasilienses. Mesmo com 73 anos, quando concedeu a entrevista ao Arquivo Público, ele parecia incansável.

“Olha, eu gostaria mesmo de fazer coisas enormes na rua, nunca tive oportunidade. Eu gosto dessa coisa com esse sentido de durar pouco, assim, no momento de festa, de alegria. Mas, realmente, o que eu faço com arquitetura pra ver se é efêmera, não, não depende da minha vontade”, constatou.

* A foto é do José Cruz (Agência Brasil)

Um comentário sobre “Athos Bulcão: “não sou autodidata. Portinari me deu uma porção de noções”

Deixe uma resposta