Como os jornais noticiaram a morte de outros gordos

Entenda o porquê fazer menção ao corpo de Marília Mendonça é mais um episódio de machismo ao ler como foram noticiadas a morte de Tim Maia e Bussunda

A primeira vez que tenho registro de ser impactado pelas notícias de uma mulher por seu corpo gordo foi quando, num episódio de depressão, a Mel C, das Spice Girls, apareceu alguns quilos acima dos costumeiros que apenas cobriam seus ossos. Foi no Europe Music Awards (EMA), premiação da MTV, no ano 2000. Mal tinha sido lançado o terceiro disco da girl group fenomenal, já bombando o sucesso do primeiro single, e Mel apareceu “gordinha” (pq Jesus Cristo, ela tava MAGRA, só havia engordado um TIQUINHO DE NADA!!!). Foi impressionante a avalanche de comentários. Todo mundo, momentaneamente, se esqueceu que ela sempre fez a principal voz da banda. Que ela é das poucas que cantam todas as faixas do primeiro disco, que em todos os arranjos vocais das meninas há um enorme espaço preenchido pela voz dela, que todas as interjeições vocais daquela canção que elas performaram no palco do EMA eram de Mel C.

Mel C é a tatuada. Os poucos quilos acima dos costumeiros causaram um frisson… Imagem: reprodução / internet
É que mulher não pode engordar, ao que tudo indica, né… Aff…

Quando Adele e Beth Ditto (da banda Gossip) surgiram, a forma física delas imediatamente virou pauta, e a forma como Ditto lidava positivamente com seu corpo tinha de estar prescrita em qualquer crítica. Há algum problema nisso? Ora, são pessoas gordas. Mas não se fala sobre o assunto quando se trata de qualquer homem. Jorge Aragão, Péricles, Serjão Loroza, todos podem ter o corpo que quiserem e suas qualidades vocais jamais serão contrastadas com a forma de seus corpos.

E é por isso que a menção ao corpo de Marília Mendonça, no artigo da Folha, é machista e descabida – arrisco dizer que não foi necessariamente gordofóbico na medida em que sua citação não era depreciativa nem aludia a algo ruim (explico mais adiante), mas é um risco e posso estar equivocado, claro*. Vamos, para efeito de comparação (e sem muita metodologia), dar uma olhada em como foram noticiadas a morte de Tim Maia e do Bussunda, que foi até onde consegui chegar em minha mini-pesquisa.

Tim Maia, morto em 1998

O cantor e compositor carioca Sebastião Rodrigues Maia, o Tim Maia, 55, morreu às 13h03 de ontem no hospital Universitário Antônio Pedro, em Niterói (a 13 km do Rio), de choque séptico (colapso do organismo causado por infecção generalizada).
Maia estava internado desde o dia 8, quando se sentiu mal durante a gravação de um show para o canal pago Multishow no Teatro Municipal de Niterói. Maia interrompeu o show ainda na primeira música. Pouco depois, foi levado para o hospital em uma ambulância do Corpo de Bombeiros.
Ao chegar ao hospital, por volta das 23h, sofreu uma parada cardiorrespiratória, mas foi reanimado. Desde então, estava internado na UTI coronariana.
Segundo médicos do hospital Antônio Pedro, Maia tinha, ao ser internado, crise hipertensiva, edema agudo de pulmão, instabilidade metabólica e de pressão, além de infecção pulmonar.
Logo após a internação, o cantor foi colocado em coma induzido, ou seja, foi sedado para não rejeitar os tubos e aparelhos, e respirava com auxílio de equipamentos.
Segundo o diretor médico do hospital, Marco Antônio Gomes Andrade, Maia apresentava, até sábado, sensível melhora em seu quadro clínico. Por isso, os médicos diminuíram progressivamente a dosagem de medicamentos que o mantinham sedado, a ponto de o cantor, anteontem, estar lúcido.

Clique aqui para ler o restante da matéria na Folha, publicado em 16/03/98

Não há menções ao corpo de Tim. Há belas menções à obra, inclusive no chapéu da matéria (que é o texto de uma linha acima do título). Importa a forma do corpo dele? Não. Portanto, uma matéria bem correta. Não encontrei artigos para comparar.

Em 2007, quando do lançamento da biografia de Tim por Nelson Motta – cujo fio condutor escolhido pelo autor para a crescente biográfica se deu pelos quilos do cantor – o O Globo publicou uma matéria, na qual há uma pequena referência ao corpo dele:

Em 1959, aos 17 anos (e 75 quilos), Tim desembarcou em Nova York, com poucos tostões no bolso e muitos sonhos. Por cinco anos, virou-se como pôde. Logo, formou um grupo de rhythm ‘n’ blues, The Ideals, enquanto acompanhava in loco o nascimento da soul music. Carreira interrompida com a deportação, em 1964, após ser preso na Flórida, para onde viajara num carro roubado com três amigos, embalados por doses industriais de álcool e muitos baseados.

Clique aqui para ler o restante da matéria no O Globo, publicado em 11/11/07
Bussunda, morto em 2006

Na trupe dos politicamente incorretos do Casseta e Planeta, um era gordo: Bussunda. Em sua morte, a Folha primeiro noticiou o que se passou na manhã de 17 de junho de 2006, quando ele morreu, e depois destacou seus feitos:

Bussunda começou a carreira de redator no início dos anos 80, e foi contratado pela Globo em 1988, como redator do “TV Pirata”, humorístico de grande sucesso e que se tornou uma “escola” dentro da própria emissora, e que inspira programas “genéricos” em outras emissoras até hoje.
Em 1992 estreou no “Casseta”, mas continuou atuando como colaborador em jornais e revistas. Era um dos colaboradores de texto do colunista fictício Agamenon Mendes Pedreira, que escreve aos domingos no jornal “O Globo”.
Casado desde 1989 com Angélica Nascimento e pai de uma filha, Júlia, o humorista completaria 44 anos no próximo dia 25 de junho.
Desde 1992, Bussunda passou a protagonizar o programa Casseta & Planeta. Entre seus principais personagens estavam as paródias ao atacante Ronaldo, do Real Madrid, e o presidente Lula.

Clique aqui para ler o restante da matéria na Folha, publicado em 17/06/06

“Apesar de ser gordo”, assim entre aspas minhas para destacar o que quis dizer o diretor do Casseta e Planeta, quando Bussunda morreu, ao referir-se ao artista como alguém que tinha uma vida normal e, inclusive, jogava futebol. Sim, como se um gordo não pudesse fazer essas coisas. Foi como a Gazeta do Povo noticiou: a única referência ao corpo gordo de Bussunda que encontrei, na cobertura de sua morte:

O diretor do programa “Casseta e Planeta”, José Lavigne, que também estava com Bussunda na Alemanha, falou sobre a morte.

– Hoje de manhã ele estava se sentindo mal e preocupado com as gravações. Eu disse que ele não precisava se preocupar, tinha os paramédicos…e aí a fatalidade aconteceu. É isso que eu tenho para falar – acrescentou o diretor, muito emocionado.
José Lavigne lembrou que Bussunda não costumava se queixar sobre saúde, além do que seria normal para alguém da faixa da idade do humorista.

Clique aqui para ler o restante da matéria na Gazeta do Povo (reproduzindo o O Globo), publicado em 17/06/06

Consegue perceber como, para falar sobre o corpo gordo de Bussunda, o cara já fala pedindo desculpas e o autor do texto ainda precisa de mil contextos mais pra poder explicar o porquê de escolher esse trecho da entrevista? É que, para falar sobre o corpo gordo de um homem, a reflexão sobre a necessidade é mais latente/evidente. No Estadão, há uma referência indireta, na aspa do colega de Casseta, Cláudio Manoel, ao fato de Bussunda ser comilão, mas ter perdido 30 quilos nos últimos anos.

O texto sobre Marília

Apesar disso, eu não vou cancelar o autor do texto sobre Marília Mendonça não. E não é condescendência masculina, tô fora disso. É que não se pode apenas destacar a frase sobre o corpo de Marília sem compreender que ele estava, ali, fazendo uma crítica ao sistema como um todo: sim, a indústria do entretenimento segue exigindo corpos magros de quem está no front. É machista porque não se falaria sobre o corpo de um homem num artigo/obituário. Mas não se falaria, também, porque a indústria do entretenimento passa ao largo dos corpos masculinos gordos. O machismo existe no artigo, mas não apenas nele, e sim na estrutura toda dessa indústria.

E não significa passar pano não: do meu lugar de fala, de aliado do feminismo e machista em desconstrução, preciso dizer que o cancelamento de quem se propõe a escrever e opinar e analisar também tem virado uma máquina de moer gente e isso precisa parar. Isso não impede que se critique o artigo em si, ou que se aponte o problema do enviesamento de narrativas como as que o historiador conservador que escreve pra mesma Folha faz (sem nomes, não boto cobra no altar), mas esse campo aqui, que é o da escrita e do pensar e do criticar e analisar, precisa ser mais marcado pela civilidade e menos pela antropofagia. Assim está todo o debate público já.

Mas é também em nome da civilidade que, novamente, critico a escolha do autor por falar sobre o corpo de Marília: ao largo das reflexões sobre machismo há uma necessidade de elegância ao se referir a quem morreu, por respeito ao ser humano que habitou aquele corpo e os seres humanos que ficam que tinham ligações afetivas para com ela, que eram muitos. Tanto os próximos quanto os distantes, os milhões de fãs.

E, mano, “não era uma excelente cantora” é das coisas mais engraçadas que podem ser ditas sobre uma cantora com os padrões de excelência de Marília Mendonça. Imagina se ela tivesse todo o talento vocal que tinha, só que em Nova Orleans? Nascida no Goiás, resolveu emprestar esse talento aos sons de sua terra – e, excelente cantora que era, abriu a porteira para uma geração inteira de outras vozes.

Era uma excelente cantora sim.

*UPDATE: opiniões mudam, e fui convencido pelo argumento de minha amiga Pollyane Marques, que é jornalista e é ativista da causa da gordofobia e mantém um perfil sensacional, o @viajagorda no Instagram. O argumento: “ao ressaltar o corpo é como questionar como estar ali sendo assim? Mas qual regra dizia que ela não poderia estar ali sendo assim? A gordofobia. Foi a gordofobia que quase tirou dela o direito de estar ali”. Saca? Tem razão, Polly!

A propósito, proseamos bastante sobre gordofobia nesse vídeo bem aqui, ó:


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