Suyan de Mattos fez o que já urgia: organizou depoimentos, textos, catalogou tudo e agora está contando como é de insistência a história de quem fez e faz o Espaço Cultural Renato Russo, na 508 Sul, acontecer… E transformou tudo num livro, que será lançado em poucos dias com edição limitada!
Eu fedia à leite no jornalismo quando resolvi, com uma amiga da faculdade, participar de um concurso do Itaú Cultural para premiar reportagens de estudantes. A gente quis logo fazer uma sobre o Espaço Cultural Renato Russo, na 508 Sul, pois aquele lugar cheio de interessância nos parecia render. Fomos a algumas exposições por lá, entrevistamos a única funcionária de carreira do local, visitamos tudo e… Que incrível! Na época, 2005, o Espaço tinha uma gibiteca volumosa no pequeno mezanino, uma biblioteca especializada em arte no primeiro andar, e os tradicionais galpões que eram os teatros, as galerias, um mini auditório, uma grande oficina de arte e salas de aula. A efervescência da programação e das obras que surgiam a partir dali contrastavam com o estado de desleixo com que parecia ser tratado.
Deu caldo?
Marromeno. Fizemos uma matéria ok, mas meio sem rumo, com um quê de denúncia sobre o abandono, mas um bocado sem noção. Coisa da inexperiência. Não fomos classificados, embora eu ache que tinha qualidade pra ir um pouco além. Minha amiga queria alucinar na denúncia, afinal, soubemos pela funcionária de carreira que:
- o então diretor do espaço era um milico amigo do Roriz (governador à época);
- ele havia mandado suspender a aula de desenho com modelo nu, porque era pouca vergonha;
- ele havia distribuído para amigos a parte do acervo da gibiteca que continha material de arte erótica, porque aquilo também era pouca vegonha – aquele moralismo maroto e safado de milico, que acha um horror a presença daqueles gibis ali, mas entre amigos tudo bem
Eu que meti o pé no freio, e depois a experiência me deu endosso. Não se faz denúncia a partir de um único depoimento, sem que se busque materialidade e muito menos sem que se busque o tão propalado “outro lado da notícia”. Do contrário, o ônus da prova ficaria sob nosso encargo. Pegamos leve, a matéria não foi publicada, e passaram-se anos. Estou, agora, retomando essa denúncia? Não, estou contando bastidores de uma apuração.
Ocorre que a coisa mais bonita que descobrimos para a feitura daquela matéria foi a história de resistência daquele espaço. Um local que era depósito de materiais, durante a construção de Brasília, e que foi reivindicado pelos artistas da nova cidade como espaço de ensaio. Os galpões se transformaram em Teatro Galpão e Teatro Galpãozinho. Novas atividades foram sendo inseridas. O espaço teve de fechar. O Instituto Tomie Othake patrocinou uma super reforma, e quando reabriu, o poeta e agitador cultural TT Catalão (que morreu em janeiro do ano passado) doou aquele acervo de gibis, tratou de agitar o espaço novamente… Mais tarde, o local passou a se chamar Renato Russo e que a família do artista iniciara conversas para haver ali um memorial dele (coisa que nunca rolou e é provável que nunca role, pois hoje em que pese a tutela de Giuliano Manfredini sobre os bens do pai, Renato Russo, a mão é pesada e é de ferro). Uns anos atrás, novo fechamento, e nova reabertura em 2016.
É, portanto, um espaço de quem insiste.
A super artista visual e pesquisadora Suyan de Mattos foi a primeira a pegar todo esse material e fazer jus ao que o espaço merece: um livro. Que se chama “A Nave 508: Espaço de Insistencialistas”.
Em 2016, entrevistei Carmen Tereza Manfredini e perguntei sobre suas memórias relacionadas aos anos 80, e ela foi cristalina ao lembrar de “O Último Rango”, espetáculo multiartístico (mesclava show musical com peça, com intervenção visual, com a feitura de um jantar) que tinha Renato Russo em cena como “um dos momentos mais divertidos da minha vida”. E foi também um momento bastante histórico para aquele espaço. Como o foram as montagens de Guilherme Reis e Hugo Rodas. Como foi a iniciação teatral de muitos dos que hoje são nossos veteranos, como Alexandre Ribondi, que começou lá, sob direção de Laís Aderne.
A história oral permite apreender como a memória de um grupo se constitui e se transmite, como reforça sua identidade e assegura sua permanência”
Suyan de Mattos
Veja as (incríveis) fotos:
Aliás, sabe o TT Catalão, já mencionado aqui? Pois é, esse livro também saiu por causa de uma conversa de Suyan com ele.
Ele falou da importância de recuperarmos a história desse local, tão marcante para a arte de Brasília”
A autora
O livro é organizado e coeditado por Kuka Escosteguy e teve recursos do Fundo de Apoio à Cultura do DF (FAC/DF).
Mais sobre o livro
Foram entrevistados artistas cênicos (atores, atrizes, bailarinas e bailarinos), artistas visuais, músicos, produtores culturais, diretores, ex-diretores do espaço e outros. Conta com depoimentos de nomes como João Antonio (idealizador do espaço), Hugo Rodas, Fernando Villar e Guilherme Reis (responsáveis por alguns dos maiores sucessos do Teatro Galpão), a atriz Iara Pietricovsky, o ator, diretor e produtor Neio Lúcio, a bailarina e diretora Eliana Carneiro e o ator e diretor Humberto Pedrancini.
Montagens antológicas passaram por lá, como “O Beijo no Asfalto” e “O Exercício”, dirigidas por Dimer Monteiro; “João sem Nome”, musical de Oswaldo Montenegro; “Flicts”, dirigido por Ary Pararraios; “Os Saltimbancos” “Trabalho nº 1”, “Trabalho nº 2”, “Trabalho nº 3”, “O Noviço” e “Besame mucho”, com direção de Hugo Rodas; “A Revolução dos Bichos”, por Guilherme Reis; “O último rango”, de J. Pingo, “Vidas Erradas ou Pode vir que não morde”, de Fernando Villar; “A Gema do Ovo da Ema”, de Murilo Eckardt.
Pouco antes da pandemia, pûde acompanhar nomes que me são basilares na formação artística, como Luciana Martuchelli, em “Mare Serenitatis”; Hugo Rodas com sua “OperAta” (em que se reuniu as três obras da Agrupação Teatral Amacaca) e Alexandre Ribondi com “Três Mulheres Baixas”.
É, de fato, um espaço incrível. Que deve ser tratado com altivez, respeito. E que deve ser frequentado por todos. Todos, sim, porque algo que não falei quando contava sobre minha reportagem de estudante e que também precisa ser dita é que a comunidade da 308 Sul, a quadra modelo, que fica logo atrás do espaço, se incomodava com “aquele bando de jovem maconheiro” que se aglomerava na calçada do espaço. Bom, decerto se sentem mais seguros quando o local é um deserto absoluto, né?
Lançamento
Local: Beirute Bar e Restaurante – CLS 109
Data: 10 de setembro de 2021
Horário: 19h às 21h
Preço do exemplar: R$ 40 (à venda na Banca da Conceição, na 308 Sul de que acabei de falar (rs) e na Livraria do Chiquinho, no Minhocão da UnB)
foto: Grupo Pitu – O Noviço, dir. Hugo Rodas / livro A Nave (Reprodução)
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