“Já está feito, já pegou fogo, quer que faça o quê?” foi a resposta de Jair quando o Museu Nacional foi incendiado. E lá se vai mais um pedação da nossa História, no momento em que país segue sob comando de quem odeia História…
Para compreender o que é que está em jogo com a queima do imenso galpão da Cinemateca, é preciso conhecer um pouco de sua história. Então lá vai:
A Cinemateca Brasileira marca seu nascimento em 1940, quando Paulo Emílio Sales Gomes, Décio de Almeida Prado, Antonio Candido de Mello e Souza e outros, fundam o Primeiro Clube de Cinema de São Paulo. Já em 1941, é fechada pelos órgãos de repressão: estávamos na ditadura do Estado Novo. Outro clube é formado em 1946, já com o propósito de estudar, defender, divulgar e desenvolver a arte cinematográfica no Brasil. O Clube vira Filmoteca do MAM, depois se desliga do museu e, em 1956, vira a Cinemateca Brasileira. A princípio, instituição sem fins lucrativos.
Incêndios
Em 28 de janeiro de 1957, um incêndio destroi as instalações da Cinemateca. Ela ficava, à época, no centro de São Paulo, na rua Sete de Abril. Em 18 de fevereiro de 1969, ocorre o segundo incêndio. Na época, a Cinemateca funcionava no portão 9 do Parque do Ibirapuera. Em 06 de novembro de 1982, o terceiro incêndio, que leva à defesa da incorporação da instituição pelo poder público.
Em 03 de fevereiro de 2016, o quarto incêndio, que resultou na perda de 1003 rolos de filmes referentes a 731 títulos. O relatório sobre o incêndio dá conta de que o acervo perdido era constituído por cinejornais (98,1%), curtas-metragens (1,7%), testes de atores de longa-metragem (0,1%), e um registro publicitário (0,1%), que registravam diferentes aspectos da sociedade brasileira nas décadas de 1930 a 1950. Dentre as características técnicas, condizentes com o período do uso do nitrato de celulose como suporte fílmico, os rolos eram na sua totalidade 35mm e em preto e branco. O problema de todos os incêndios, até aqui, era exatamente este material: em determinadas condições o nitrato de celulose pode entrar em autocombustão e seu fogo não pode ser apagado com água ou pó químico porque são materiais capazes de produzir ainda mais oxigênio em contato com o nitrato e ampliar a dimensão do incêndio. Por isso, cada vez que houve uma queima, até aqui, o motivo foi: descaso.
O deste 29 de julho é, portanto, o quinto incêndio, e o primeiro na sede 2 da Cinemateca, na Vila Leopoldina (zona Oeste da capital paulista).
A sede
A instituição funciona desde 1988 no prédio do antigo Matadouro Municipal, na Vila Clementino, na Zona Sul de São Paulo. O local foi doado pelo então prefeito Jânio Quadros e, após a instalação da Cinemateca, tombado pelo Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Arqueológico, Artístico e Turístico do Estado de São Paulo (Condephaat), e pelo Conselho Municipal de Preservação do Patrimônio Histórico, Cultural e Ambiental da Cidade de São Paulo (Conpresp). O órgão estadual tem atuação mais presente nos locais que reconhece e tomba do que o próprio Iphan.
O local tem 24 mil metros quadrados e funcionou como matadouro entre 1887 e 1927. Até virar a sede da Cinemateca, ficou abrigando uma série de repartições públicas municipais, sem qualquer compromisso com a preservação do prédio, cujo projeto arquitetônico é assinado pelo alemão Alberto Kuhlmann.
Desde 2009 a Cinemateca tem também o prédio que pegou fogo nesta quinta-feira (29), na Vila Leopoldina, na zona Oeste – bairro que, antigamente, abrigava uma zona industrial e passa por gentrificação neste momento. O principal ponto de referência do local é a Ceasa. O interessante de estar ali, porém, é que como as antigas fábricas eram galpõezões, várias empresas de audiovisual passaram a se instalar ali – dentre as quais, a Empresa Brasil de Comunicação (EBC). O que não é lá grandes coisas, porque no início de fevereiro do ano passado, boa parte do bairro se viu sob uma inundação absurda, o que inclusive inviabilizou o funcionamento da EBC em sua sede por todo o ano de 2020. Também houve alagamento da Cinemateca naquele episódio. O local abriga a reserva técnica e o laboratório de impressão fotográfica digital.
Gestões
Então, em 1956, quando ganhou o nome de Cinemateca Brasileira, era uma sociedade civil sem fins lucrativos. Em 1961, virou uma fundação, o que permitia estabelecer convênios com o governo do estado. Para auxiliar financeiramente a agora fundação, é criada, em 1962, a Sociedade Amigos da Cinemateca. Em 1984, após o terceiro incêndio, a fundação é extinta e a Cinemateca é incorporada como órgão autônomo da Fundação Nacional Pró-Memória. Assim permanece até 2003, quando a Secretaria do Audiovisual do Ministério da Cultura a incorpora.
Aí né… Em 2016 tem o golpe, e o povo que governa o país desde então não é lá muito afeito ao conhecimento, por entender o perigo que o conhecimento representa para a emancipação das mentes humanas. Então passaram a Cinemateca pra Associação de Comunicação Educativa Roquette Pinto (Acerp).
Quando o presidente demitiu a pseudosecretária de Cultura do posto, Regina Duarte, prometeu a ela a presidência da Cinemateca. Graças a Deus não aconteceu, porque seria ainda mais bizarro termos de lidar com o incêndio e essa moça dando show.
O acervo
São mais de 250 mil rolos de filmes e mais de um milhão de documentos. Infelizmente o galpão que pegou fogo conservava boa parte dos arquivos da Cinemateca. Ainda não é possível estimar o tamanho das perdas.
Desmonte
Óbvio que o governo atual CAGA pra Cinemateca. Salários atrasados de funcionários, interrupções de funcionamento, etc, marcam a atual gestão. Esse incêndio de agora não foi por falta de aviso… Ó:
Em agosto passado, a Secretaria Especial de Cultura tomou as chaves da Cinemateca, numa operação cheia de show, com homens fortemente armados da Polícia Federal. Isso após o abandono de mais de seis meses da instituição – período em que foi rompido, inclusive, o contrato com a Acerp de forma unilateral.
Borba Gato
Um empresário, doido pra aparecer como o mega in do liberalismo, não disse que ia refazer aquela estátua horrorosa do genocida de índios do Borba Gato, em Santo Amaro? Só porque teve uma manifestação que ateou fogo na estátua e fez o favor pro maior bairro da Zona Sul de São Paulo de se livrar daquela coisa horrorosa? Que, além de feioso, é símbolo do que de pior houve na nossa História? Então: avisa a esse mesmo empresário que tinha quatro estátuas do Borba Gato lá dentro da Cinemateca. Vamos ver se ele realmente se importa com a História do nosso país ou se tá só querendo se fazer…
foto: Mídia Ninja (topo) / Trabalhadores da Cinemateca Brasileira (última) / Reprodução
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