Se você tem mais de 30, é capaz de lembrar o que fazia em 1996. Aonde quer que você estivesse, seria tocado, cedo ou tarde, pelo fenômeno pop Spice Girls. Ao completar um quarto de século, gravadora relança vinil e inédita das apimentadas
Passos acelerados, som do toque da plataforma pesada de Geri na calçada em frente ao Sant Pancras Grand Hotel – som acompanhado de outros toques de outras oito pernas. Correm para dentro do hotel, jogam o menu do restaurante para o alto enquanto cercam o recepcionista – um senhorzinho. Risada marcante de Melanie Brown, ou Mel B, que se vira pra câmera expondo a blusinha verde que marca a liberdade de estar sem sutiã.
E o verso inicial, na voz potente: “Yo, I’ll tell you what I want, what I really, really want!”, respondido pelo quase idêntico “So tell me what you want, what you really, really want” na voz da também contralto Geri – vestida com exuberante blusinha de lantejoulas e cabelos muito vermelhos com uma mecha loira no que seria a franja.
A câmera acompanha, em plano de sequência, a bagunça das mulheres que, livres, brincam com os granfinos do ambiente que mantém a decoração vitoriana, castiçais e luxos afins. Repetem-se os versos, entra em cena o vozeirão da soprano Melanie Christolm, a Mel C, de blusinha alaranjada, igualmente marcando a ausência de sutiã, com calça larga de esportista e rabo de cavalo. “If you want my future, forget my past”, avisa. “If you wanna get with me, better make it fast”, completa Emma Bunton, a loirinha de olhos muito azuis do grupo, vestida como adolescente, vestido rosa, duas chucas no cabelo, voz mezzo ou soprano, doce.
Seguem sem cortes, zoando o ambiente, até o refrão em coro: “if you wanna be my lover, you gotta get with my friends”, numa dancinha na escada pomposa, com vitrais ao fundo, que se transformou em cena clássica do audiovisual de música no mundo. Wannabe é, certeiramente, música em que é impossível ficar parado. O toque de duas notas ao piano ou teclado que se alterna ao longo das estrofes é certeiro. Temos, portanto, um clássico do pop aliado ao vídeo que dá forma e cor a este clássico.
Parece que foi ontem, mas já faz meio século. Fará, no próximo 8 de julho. E, para a surpresa de fãs de todo o mundo, a Universal resolveu lançar um vinil e uma fita cassete com Wannabe e uma canção inédita, “Feed your love”, que os fãs conhecem porque tiveram acesso a uma versão vazada, mas taí, será original. Quer? Tá à venda no site oficial, custa algo como R$244. O vinil, porque os cassetes acabaram.
Posso afirmar com a tranquilidade de quem vivia longe dos grandes centros urbanos, naquela data, que cedo ou tarde a canção tomou conta de todos os lugares. E se hoje há toda uma compreensão de que os meninos que gostavam daquelas mulheres fatalmente seriam gays, naquela época, quem era menino, provavelmente não pensasse nisso ou dissociasse música de orientação sexual.
No ano seguinte ao lançamento de Wannabe, com as Spice já estouradas em todo o mundo, um dia o meu melhor amigo da época chegou na escola – nosso colégio de freiras na pequena cidade do sul mineiro – com um discman e o cd delas, para ouvir no intervalo. Segue hétero. Havia, naquele contexto machista, inclusive, um apelo para que os meninos gostassem daquelas mulheres gostosas, e seria estranho demais ser fã dos equivalentes masculinos que estourariam pouco depois, os Backstreet Boys, ou os Hanson. Já na cidade em que eu passava férias, a compreensão era a contrária: meninos deveriam gostar dos garotos da rua de trás e imitar suas vestes, seus estilos e até seus passinhos nos clipes – que conhecíamos por meio de VHSs que provinham de cópias de cópias de alguém que teve acesso à MTV e, belo dum dia, gravou.
Ou seja: era mesmo um bocado fajuta a Teoria Hipodérmica, segundo a qual, uma mensagem distribuída pelos meios massivos da cultura de massa seria igualmente recebida pelos seus ouvintes-espectadores, tal como uma tatuagem idêntica que se desenha na hipoderme das pessoas.
Feminismo
Estávamos na metade da década de 1990, saídos há pouco de um trauma violento de 20 anos, e toda e qualquer mensagem que se impusesse à pauta de costumes era imediatamente mal recebida. Daí as cenas tão marcantes quanto as da banheira do Gugu na televisão, nos lares da família brasileira aos domingos. Num episódio de “Confissões de Adolescente”, de 1994/1995 na TV Cultura, Lucélia Santos interpretava uma feminista e era imediatamente retrucada pela protagonista feminina: “que besteira!”. Dá um bizú, aos 21’55”:
Mas… Surgiram, longo em seguida, as Spice Girls.
Não, não estou reduzindo a luta das muitas mulheres que seguiram denunciando o patriarcado e desconstruindo o machismo estrutural da sociedade no período. Mas é fato que as icônicas garotas da Inglaterra chegaram, com suas músicas, roupas e linguagens, a um público de meninas mais jovens. Era a revolução do “girl power”, que tinha em Geri Halliwell a liderança criativa. Tanto que esse discurso perde força e até é escanteado após a saída dela, em 1998. Sob a liderança de Mel B, até o som das garotas muda bastante e adota uma batida que ainda hoje é muito usual no pop: a do r&b.
Essa capacidade de chegar às meninas foi tema da edição zero de uma publicação que a Editora Abril criou para o público infanto-juvenil: a revista Veja Kid+, no fim da década de 90. A edição zero foi distribuída gratuitamente para assinantes de qualquer periódico da editora. E nela, havia uma matéria sobre o “girl power” apregoado pelas Spice, e como contraponto uma jovem britânica que dizia “eu odeio todas as Spice Girls, elas vivem vendendo uma imagem sensual”. Como percebemos no pequeno trecho de Confissões e nesta aspa, a questão da exposição do corpo era um paradigma muito forte no feminismo, visto que esbarra na objetificação. Hoje, porém, o avanço da ideia de empoderamento permite que essas falas sejam menos frequentes, já que reconhece-se que a mulher pode se vestir ou se comportar como quiser.
É só ver o que quem era bem jovem na época e hoje tem 30 e poucos fala sobre a contribuição delas para a própria formação feminista:
PS: spicefãs, eu sei que o clipe de Wannabe tem um prólogo, que elas cantam à capella, etc. Descrevi o começo do clipe que todo mundo podia ver, era o que passava nas MTVs da vida, não sejam como fãs da Juliette ou dos Los Hermanos que estragam tudo pra demonstrar que sabem mais que os outros quando se trata do artista-ídolo. Vocês não tem nem mais idade pra isso, pelo amor.
Um comentário sobre “Wannabe, 25 anos: o início de uma onda feminista de alma pop e LGBTQIA+”