Onde há (cortina de) fumaça, há fogo: é onde morrem Kathlen Romeo, João Alberto, Evaldo Rosa, Ágatha Félix…

Enquanto Iphan monta grupo de trabalho para certificar armas de valor histórico – coisa que já é sua atribuição normal, mas tornou-se prioritária depois que Mário Frias resolveu andar armado por aí – o Estado segue executando pretos pobres

Nos anos 90, um cantor era febre do axé: Netinho. Seu disco com a famozérrima “Mila”, o Ao Vivo, gravado em Aracaju (SE) e lançado em 1996, era um compilado de hits que eu, como DJ de axé vintage, terei dificuldade de não tocar uma ou outra quando as festinhas voltarem. Agora, em 2021, ele tenta apagar da própria história a fatídica entrevista em que se assumiu gay, aliando-se ao bolsonarismo (e filho, quem quis abrir as portas do seu armário foi tu, só tô lembrando). Você deve estar se perguntando, agora, o que é que tem a ver evocar Netinho num texto sobre a execução de pessoas negras… É que aquele disco tinha uma ilustração de toda a escrotice que criminaliza pessoas pelo tom de pele e endereço. Ouve:

Pra quem mora lá no morro, pra quem vive nas encostas… Onde o diabo faz fogo, pra onde Deus virou as costas
Onde a morte começa, onde a vida termina:
Esse barraco vai cair, eu não me canso de avisar! Ele não tem alvenaria, não tem coluna pra apoiar… Ai, eu não quero ver o dia dessa zorra desabar

Autor: Tenison Del Rey / voz: Netinho

Na visão de um branco classe média, morar no morro é estar onde o diabo faz fogo e para onde Deus virou as costas. É estar onde a morte começa e onde a vida termina. Ele “não cansa de avisar”. E o refrão é: “vai desabar / não dá pra viver lá”. Isso, no entusiasmo do axé, é como que debochar das condições de vida de outrém. Como cantar Sunday, bloddy sunday, do U2, em ritmo de samba, igual fazia o Sambô.

É como disse, certa vez, o Gregório Duvivier: ninguém no Brasil nunca fez merda em nome do Capeta, da maconha ou da sacanagem. Toda vez que mataram, escravizaram e torturaram no Brasil foi em nome de Deus, da pátria e da família. Aliás, esse artigo todo é muito bom. E os cristãos, os “Deus acima de todos”, os “em nome de Jesus” (exceto o Gil) estão aí, no poder, conduzindo o extermínio da população negra enquanto cantam, felizes, “ô ô ô ô ô ô / vai desabaaaaar!”…

Arma é patrimônio cultural?

A fixação fálica por pistolas dos atuais mandatários tem um total de zero por cento a ver com essa polêmica de o Instituto do Patrimônio Artístico e Histórico Nacional (Iphan) registrar armas como patrimônio cultural. A não ser pela perspectiva da cortina de fumaça, já que vazou na imprensa o péssimo trato pessoal do secretário Mario Frias (ex-Malhação) para com a equipe que gerencia e os fatos de ele andar armado e de o governo querer porque querer que armas sejam colocadas num altar. Mas o Iphan já reconhece não apenas armas, mas qualquer objeto que tenha valor histórico, como passível de registro e proteção. Exemplo?

Canhões são armas, e esses aí estão na Orla da cidade de São Sebastião (SP), desde sempre, expostos à população e aos turistas, pois contam a História da cidade (o centro histórico é tombado pelo órgão estadual que protege o patrimônio no estado de São Paulo). Claro que quiseram criar um factoide pra pagarem de machões, os mandatários, e impor a pauta armamentícia no debate público. Como se não tivessem sido armas de posse do Estado as que mataram Kathlen Romeo, Ágatha Félix e Evaldo Rosa. Como se precisássemos nos lembrar, neste momento, de que o governo gosta de armas. Como se elas não estivessem o tempo inteiro no noticiário.

Na matéria que saiu na Folha de S. Paulo, houve a divulgação dos nomes dos dois integrantes do grupo de trabalho. Um dos quais, Adler Homero Fonseca de Castro, é especialista em armaria – verbete que ele próprio descreveu, e cujo arquivo com as definições fica no site do Iphan. Tá aqui o atalho, pra encurtar o caminho, caso queira saber mais. Mas ele é servidor de carreira do órgão, é doutor em História e conduziu sua pesquisa, a vida toda, pelo caminho das armas. Em 2001, ele colocou um site no ar, chamado Armas Brasil, que foi atualizado pela última vez em 2003 (é até interessante entrar nele e conhecer a pré-história da internet com seus planos de fundo coloridos, botões de link e formulários de contato). Partes importantes do site dizem que:

o conteúdo destas páginas foi elaborado por um historiador com experiência em trabalhos de museu e, portanto, foi feito um esforço para trabalhar as armas não como elementos isolados, mas como ferramentas que servem para ilustrar um determinado momento da história, seus usos e os reflexos que tiveram nas sociedades que as produziram e usaram”. Diz ainda que “este é um sítio de propósitos não lucrativos, que trata basicamente das armas usadas pelas forças armadas (de terra) no Brasil” e, por fim, que “as informações aqui contidas são de natureza histórica, não pretendendo ser, de forma alguma, uma apologia da guerra, da violência ou a qualquer linha política”.

Ou seja, se é pra tirar o Iphan da inércia em que se encontra, arrume uma justificativa melhor, Frias, porque a análise que pessoas como Adler darão ao tema das armas será, bem provavelmente, técnica e rigorosa e não terá nada a ver com certificar a SUA arma como patrimônio cultural. E convenhamos…

A hora é a mais inoportuna possível.

Como já disse, não precisamos saber da preocupação de registrar armas como patrimônio quando elas nos massacram a todo o momento, no noticiário, que expõe cada vítima do genocídio negro conduzido pelo Estado. Não nos esquecemos, nem esqueceremos deles, que são apenas alguns:

  • Kathlen Romeo: designer, grávida, foi executada com uma bala na cabeça aos 24 anos ao entrar no Complexo de Lins, no Rio de Janeiro (RJ). A PM alega que o tiro não partiu de suas armas (as que estavam com os policiais no dia foram recolhidas para averiguação e EU DUVIDO que cheguem à conclusão que partiu de um agente do Estado). A mãe da jovem, no entanto, argumenta que só se pronuncia porque sabe que quem matou a filha foi a PM, já que, se fossem os traficantes, ela não poderia falar nada.
  • Chacina do Jacarezinho: os 27 mortos na favela da zona norte do Rio pela operação mais letal da história da cidade, conduzida pela Polícia Civil no último 4 de maio. Boletins médicos concluíram que houve extermínio, já que parte das vítimas chegou com corpos eviscerados (com as vísceras expostas) e rostos dilacerados. Bolsonaro parabenizou a Polícia.
  • João Alberto: em 20 de novembro passado, João Alberto Freitas foi espancado até a morte por seguranças do Carrefour, em Porto Alegre (RS). Não foi um caso de repressão estatal, mas reproduz o racismo institucional presente no país. Nesta quarta-feira, o supermercado aceitou fechar o maior acordo extrajudicial do país para tentar reparar a morte: pagará R$120 milhões em multas.
  • Ágatha Félix: prestes a completar nove anos de idade, a menina Ágatha foi executada pela PM enquanto voltava pra casa, ao lado da mãe, no banco de trás de uma kombi. Foi em 21 de setembro de 2019, e até agora o policial acusado de disparar contra a criança ainda não foi julgado.
  • Evaldo Rosa: em 07 de abril de 2019, o músico teve o carro parado quando atravessava a comunidade de Guadalupe, por soldados do Exército. Ele foi fuzilado por 62 tiros. Não havia autorização legal para os militares agirem, o que só é possível quando há decreto de Garantia da Lei e da Ordem (GLO). O último decreto de GLO para o Rio de Janeiro, assinado por Michel Temer, havia vencido em 31 de dezembro de 2018. A Agência Pública fez uma investigação sobre o episódio:

E não nos esqueçamos, nunca, jamais: #MariellePresente. Marielle Franco foi assassinada em 14 de março de 2018, no bairro do Estácio, após participar de uma atividade feminista no contexto de sua vereança. O crime segue sem elucidação, mas não se pode mencionar o nome dela que quem segue o presidente começa a dar chilique. Simples: negra, bissexual, advinda da favela da Maré, do PSol e lutando por direitos humanos? Tudo o que eles mais odeiam.

Eis a Praça Marielle Franco. Foto: site do deputado Fábio Félix

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